Aglomerado da Serra, 2019 . Fonte: Arquitetos da Vila
por:
Lucas Jório e Wanda Foresti
Arquitetos da Vila – Belo Horizonte/MG
O filósofo Renato Janine Ribeiro sugeriu em seu texto “Uma vida social muito cara” que melhorias sociais no Brasil podem encontrar um caminho mais eficaz no “engate do privado e do público, do afeto e da razão”, ao “articular o pessoal com o social, o interesse com a política”. Essa articulação propiciaria uma vida social mais “barata”, mais atraente e possível para agentes interessados. O pensador destaca tratar-se de um “trabalho positivo”, que
consiste em tornar barata a vida pública, em desonerar a vida social. Construí-la com base na virtude é ineficaz: poucos são os virtuosos. O preço da liberdade – de uma liberdade que no passado romano ou no futuro moderno, no século XVIII, se chamará “republicana” – agora se mostra excessivo. Daí que seja preciso construir resultados aceitáveis a menor custo. Isso se consegue investindo-se nas paixões, para Hobbes e Espinosa, ou, no caso de Mandeville, mais explicitamente nos vícios privados.¹
Em outras palavras, a compaixão e a solidariedade não atingem significativamente nossos graves problemas sociais, não apenas porque esses problemas são estruturais, mas porque essas virtudes morais em nossos tempos são muito raras e custosas e geram poucos benefícios. Traduzindo: quem consegue trabalhar o dia inteiro e nas horas extras e finais de semana ainda trabalhar para melhorar a vida dos outros? Quem aproveita suas férias para se dedicar a uma comunidade carente? Poucos. A solidariedade é essencial, em algumas ocasiões pode ser salvadora, mas tem um alto custo para o indivíduo e não produz resultados muito significativos e duradouros.
Tomando a liberdade de traduzir o raciocínio do filósofo para nosso propósito, diríamos que fazer um bem social como negócio seria fazer esse bem ser algo mais racional, menos custoso do ponto de vista do indivíduo interessado em melhorar o mundo. Fazendo um bem através de uma empresa, que precisa vender e se sustentar, me dedicarei exclusivamente a isso, terei retorno financeiro, não precisarei sacrificar meu tempo livre nem me debater com minha consciência sobre uma sociedade melhor, uma vez que estarei fazendo algo por uma sociedade melhor. É interessante notar em empreendedores sociais um aparente ofuscamento da sensibilidade social, e da parte de desconfiados a suspeita de tratar-se de pessoas aproveitadoras, exploradores de pobres.
Na verdade, trabalhar contra as desigualdades é parte da rotina de quem se lança em um negócio social, então os empreendedores podem se dar ao “luxo” de ofuscar em si mesmos a indignação, a frustração, o mal-estar com nossa pobreza. Eles estão engatando seus interesses em causas sociais e buscando canalizar uma paixão investindo nela, fazendo dela um negócio. Dessa forma é interessante entender a observação do filósofo de que esse engate torna a vida social mais “barata”, ou seja, quem faz essa articulação passa a suportar mais facilmente os sofrimentos de viver em um país tão desigual, na medida em que trabalha, dedica a maior parte de seus dias e esforços para diminuir essa desigualdade e obtém um retorno material por isso.
O pessoal, o privado, o interesse do empreendedor está colocado de duas formas: ele quer sofrer menos, correndo inclusive o risco de parecer alguém que explora a pobreza, e quer ganhar o seu. Os “vícios privados” estão assumidos: o interesse pelo dinheiro, pelo lucro, pelo sucesso, e o interesse por sua própria paz de consciência, por não sofrer tanto a culpa ou o incômodo de ser um privilegiado em uma sociedade tão desigual. No momento em que esses “vícios privados” são canalizados para um trabalho social, podemos ser mais eficazes, “construir resultados aceitáveis a menor custo”.
Construir vida social com base em interesse, e não em virtude, pode dar mais resultado. Do ponto de vista de moradores de áreas pobres, para quem o acesso a serviços básicos é muito difícil ou inexistente, o investimento virtuoso, descomprometido, voluntário na vida pública é ainda mais custoso. Aqui interessa uma observação recorrente de empreendedores de negócios de reforma em favelas e periferias: o morador que tem acesso a uma reforma de qualidade em sua casa passa a se preocupar mais e querer cuidar de um espaço externo à sua casa. Ele projeta o cuidado com sua casa para fora. Através de um benefício privado ele percebe o espaço público mais próximo, mais acessível, mais permeável à sua ação.
Assim podemos intervir também em outro problema observado pelo mesmo autor, que é a oposição entre as noções de “sociedade” e “social” em nosso país: “o social diz respeito ao carente; a sociedade, ao eficiente.”² Atendendo ao interesse privado de quem normalmente é visto como mais fraco, que mais sofre as injustiças, podemos tornar “mais barata” sua vontade de participar e melhorar o mundo lá fora, pelo simples contraste entre uma cozinha nova e agradável e um beco descuidado. Uma ação decorrente daí, de uma percepção de que minha bela casa merece um acesso melhor, é mais provável do que pela conscientização de que o beco é público.
Oferecendo um serviço de qualidade a lares e famílias desacreditados, vendendo e dando crédito a quem a “sociedade” costuma fechar portas e janelas, enfim, se interessando pelos mais pobres, e não apenas se envolvendo ou solidarizando com eles, os negócios sociais rompem com o estigma de uma população que, por viver em condições precárias, não pode pagar, não pode negociar, não pode contratar, não pode se mexer e está condenada a viver à espera de auxílios e socorro, principalmente do Estado.
São bem conhecidas a importância e as enormes dificuldades, o alto custo do reconhecimento e do tratamento público de favelas e populações pobres das cidades brasileiras. A definição legal dessas áreas (ZEISs) afirma que são “especiais” e de “interesse social”, mas sabemos que as intervenções e programas voltados para essas áreas custam a se sustentar e muitas vezes se perdem rapidamente. Talvez falte a eles mais articulações com outros interesses, especialmente interesses pessoais de moradores. Uma ilustração desse argumento seria o seguinte: uma cliente dos Arquitetos da Vila manifestou, no dia da entrega da sua reforma, o interesse em acionar a prefeitura para realizar alguma intervenção no beco que ela avistava de sua nova cozinha. Antes da reforma a situação do beco não a incomodava tanto.
Os negócios sociais buscam também promover uma ampliação da noção de “interesse social”, ao assumir e implicar novos “interesses” para a construção de uma vida social melhor. O tratamento das desigualdades no Brasil avançou ao longo do século XX no sentido de um progressivo reconhecimento da natureza social dessas desigualdades. Entendemos que o surgimento e fortalecimento dos chamados negócios sociais no Brasil é mais um importante marco nesse processo, uma vez que buscam “baratear” e tornar cada vez mais interessante as ações sociais.
1 RIBEIRO, Renato Janine. “Uma vida social muito cara”. In: A sociedade contra o social: o alto custo da vida pública no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 151.
2 “A sociedade contra o social ou A sociedade privatizada”. Op Cit, p. 21.
Imagem de capa – Fonte: Arquitetos da Vila, Aglomerado da Serra, 2019.
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WANDA FORESTI
Sócia Fundadora responsável pela área de projetos e obras.
Experiência em coordenação de planos e projetos de urbanização para favelas brasileiras e em serviços de arquitetura e engenharia públicas, com atuação em empresas privadas e prefeituras.
Vencedora do Prêmio Negócio Destaque no Lab Habitação: Inovação e Moradia, realizado pela Artemisia e Gerdau, 2019.
Graduada em arquitetura e urbanismo pelo Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix.
LUCAS JÓRIO
Sócio Fundador responsável pela área comercial e de relacionamento com os clientes.
Experiência em trabalho técnico social e programas de habitação junto à Companhia Urbanizadora e de Habitação da PBH (Urbel), Vallourec, PHV, Urbe Consultoria e Projetos, entre outros.
Vencedor do Prêmio Negócio Destaque no Lab Habitação: Inovação e Moradia, realizado pela Artemisia e Gerdau, 2019. Graduado e mestre em História pela UFMG.